A conversa sobre migrar de um monólito para microsserviços geralmente começa quando as coisas ficam dolorosas. Builds passam a demorar uma eternidade, uma mudança pequena exige um redeploy completo, e vários times vivem se bloqueando dentro da mesma base de código. Você não consegue escalar o serviço de perfis de usuário sem também escalar o módulo de relatórios quase nunca usado ao qual ele está acoplado. A simplicidade inicial que tornava o monólito atraente acaba dando lugar a gargalos que desaceleram o crescimento do produto.
O monólito não é inerentemente ruim; muitas vezes ele é o ponto de partida mais lógico. O problema é que, à medida que a complexidade cresce, o acoplamento se intensifica, e fazer mudanças se torna lento e arriscado. Com o tempo, cada deploy parece um evento de alto risco, e a dívida técnica se acumula em cantos da base de código que ninguém mexe há anos. Normalmente é nesse momento que alguém sugere quebrar tudo.
Microsserviços prometem uma solução: serviços independentes que podem ser desenvolvidos, implantados e escalados de forma isolada. Times passam a ter ownership de ponta a ponta do seu código, escolhem a melhor tecnologia para cada problema e deixam de depender de um grande deploy sincronizado entre vários times. Mas essa flexibilidade vem acompanhada da complexidade inerente a sistemas distribuídos. De repente, você está lidando com latência de rede, consistência de dados entre serviços e um aumento significativo no overhead operacional.
Como saber se é hora de quebrar o monólito
Migrar para microsserviços é uma decisão que deve ser guiada por necessidades claras de negócio e de organização, e não apenas por apelo técnico. Antes de escrever uma única linha de código para um novo serviço, você precisa avaliar se o seu sistema, o seu negócio e os seus times realmente estão prontos para essa mudança.
Motivadores de Negócio e Técnicos
Os motivos mais fortes para quebrar um monólito estão ligados a dores bem específicas.
Partes diferentes da aplicação evoluem em ritmos muito distintos?
Uma funcionalidade exige capacidade de escala 100x maior do que o resto do sistema?
Esses são sinais claros de que a arquitetura está te segurando.
Algumas perguntas ajudam a identificar se você tem os motivadores técnicos certos:
- Evolução Independente: Você precisa atualizar o fluxo de checkout várias vezes por semana, enquanto o sistema de autenticação muda uma vez por ano? Nesse caso, desacoplá-los permite que o time de checkout avance mais rápido sem colocar em risco a estabilidade da autenticação.
- Necessidades de Escala Diferentes: O módulo de processamento de vídeo precisa de muitos recursos de computação por algumas horas do dia, enquanto o resto da aplicação tem tráfego constante? Separá-lo permite escalar esse serviço de forma independente, reduzindo custos de infraestrutura.
- Requisitos de Tecnologia: Existe alguma parte do sistema que se beneficiaria muito de outra linguagem de programação ou banco de dados? Um componente de data science pode se encaixar melhor em Python e em um banco especializado, algo difícil de integrar em uma aplicação monolítica em Java ou Ruby.
Prontidão Organizacional
É aqui que a maioria dos times erra. Você pode ter todos os motivos técnicos certos para adotar microsserviços, mas se a organização não estiver preparada, a chance é grande de acabar criando um monólito distribuído, que é pior do que o problema original.
Alguns pontos ajudam a saber se a organização está pronta:
- Maturidade em DevOps: É essencial ter pipelines de CI/CD totalmente automatizados e confiáveis. Se o deploy ainda é um processo manual, com várias etapas, gerenciar dezenas de serviços será inviável. Cada serviço deve ter seu próprio pipeline e conseguir ir para produção de forma independente.
- Observabilidade: Em um monólito, um stack trace costuma resolver boa parte do problema. Em um sistema distribuído, uma única requisição pode passar por vários serviços. Sem logs centralizados, tracing distribuído e métricas sólidas, o debug vira um pesadelo. Essa infraestrutura precisa existir desde o primeiro dia.
- Estrutura e Experiência dos Times: Os times precisam estar preparados para lidar com as complexidades de sistemas distribuídos. Isso inclui experiência com coisas como containerização (por exemplo, Kubernetes), design de APIs e comunicação em rede. Também é necessário ter uma governança clara de APIs para garantir que os serviços consigam se comunicar sem criar acoplamentos fortes.
Um guia prático para quebrar o monólito
Depois de decidir seguir em frente, a migração em si deve ser gradual e incremental. Um rewrite em “big bang” quase sempre é um erro. O objetivo é extrair partes do monólito com segurança, sem interromper o funcionamento do sistema atual.
Encontrando Limites de Serviços com Domain-Driven Design
O primeiro passo é entender onde traçar as linhas entre os novos serviços. Isso é mais arte do que ciência, mas o Domain-Driven Design (DDD) oferece um bom framework. O conceito central aqui é o de “Bounded Context”, um limite dentro do qual um determinado modelo de domínio é consistente e bem definido.
Na prática, isso significa procurar domínios lógicos dentro da aplicação. Um e-commerce pode ter bounded contexts como “Pedidos”, “Estoque”, “Pagamentos” e “Contas de Usuário”. Cada um deles é um bom candidato a se tornar um microsserviço separado, porque sua lógica interna e seus dados são relativamente independentes.
Migração Incremental com o Strangler Fig Pattern
O Strangler Fig Pattern é a forma mais confiável de realizar uma migração incremental. A ideia é construir um novo serviço e, aos poucos, “estrangular” o monólito antigo, redirecionando o tráfego para a nova implementação até que a antiga possa ser aposentada.
Normalmente funciona assim:
- Configure uma camada de proxy: Um API Gateway ou outro proxy é colocado na frente do monólito. No início, ele apenas encaminha todo o tráfego para o sistema antigo.
- Extraia um serviço: Você identifica uma funcionalidade, como o gerenciamento de perfis de usuário, e a constrói como um serviço novo e independente.
- Redirecione o tráfego: O proxy passa a encaminhar todas as requisições relacionadas a perfis de usuário (por exemplo,
/api/users/*) para o novo serviço. Todo o restante continua indo para o monólito. - Repita: Você segue esse processo, extraindo um serviço por vez, até que o monólito seja totalmente substituído ou reduzido a um núcleo gerenciável.
Uma “camada anti-corrupção” costuma ser implementada junto com esse padrão, atuando como uma camada de tradução entre o modelo do novo serviço e o modelo do monólito antigo, evitando que o design legado contamine a nova arquitetura.
Gerenciamento de Dados é a Parte Mais Difícil
Decompor o código é uma coisa; decompor o banco de dados é outra completamente diferente e, muitas vezes, o maior desafio. O estado ideal é o padrão “um banco por serviço”, em que cada microsserviço é dono dos seus próprios dados e outros serviços só conseguem acessá-los por meio de uma API bem definida. Isso garante o desacoplamento de verdade.
Chegar lá exige uma estratégia de migração de dados em fases. Você pode começar fazendo o novo serviço escrever no seu próprio banco, mas ainda ler do banco do monólito. Com o tempo, é possível criar mecanismos de sincronização até que o novo serviço se torne a única fonte de verdade e as tabelas antigas possam ser removidas.
Para operações que envolvem múltiplos serviços, não dá para depender de transações ACID tradicionais. É aí que entram padrões como o Saga Pattern. Uma saga é uma sequência de transações locais, em que cada transação atualiza o banco de um único serviço e publica um evento que dispara o próximo passo do processo. Se alguma etapa falhar, a saga executa transações compensatórias para desfazer os passos anteriores, mantendo a consistência dos dados.
Preparando os times para um sistema distribuído
Você não constrói um sistema distribuído com uma estrutura de times centralizada. A Lei de Conway diz que as organizações tendem a projetar sistemas que refletem suas estruturas de comunicação. Para criar serviços fracamente acoplados, você precisa de times fracamente acoplados.
Isso geralmente exige aplicar o “Inverse Conway Maneuver”: reorganizar os times para refletir a arquitetura desejada. Isso significa criar times pequenos, autônomos e multifuncionais, com ownership de ponta a ponta sobre um serviço ou um conjunto de serviços relacionados. Esse time é responsável por tudo: desenvolvimento, testes, deploy e suporte em produção. Dar esse nível de autonomia é fundamental para o sucesso de uma arquitetura de microsserviços.
O que costuma dar errado
O caminho até os microsserviços tem várias armadilhas. Saber onde elas estão ajuda a evitar problemas no meio do caminho.
Começar cedo demais
Não decomponha antes da hora. Se o monólito ainda é gerenciável e o time consegue entregar features de forma eficiente, continue com ele. O overhead dos microsserviços é alto.
Criar serviços pequenos demais
O objetivo não é criar o maior número possível de serviços. “Nanosserviços” podem causar uma explosão de complexidade operacional e comunicação excessiva pela rede. Comece com serviços maiores, alinhados ao domínio, e só quebre mais se houver uma necessidade clara.
Subestimar a observabilidade
Se você deixar para implementar monitoramento e tracing adequados só depois que os serviços já estiverem em produção, a experiência vai ser ruim. Construa observabilidade desde o início.
Criar um monólito distribuído
Esse é o pior cenário. Ele surge quando os serviços ficam fortemente acoplados por chamadas síncronas ou por um banco de dados compartilhado. Uma falha em um serviço pode se propagar e derrubar todo o sistema, e os deploys continuam exigindo coordenação entre vários times. A chave é projetar pensando em baixo acoplamento e comunicação assíncrona sempre que possível.
No fim das contas, migrar para microsserviços é um investimento de longo prazo. Não é uma solução rápida para uma base de código bagunçada. Quando feito pelos motivos certos e com uma base sólida de infraestrutura e práticas de time, pode oferecer a escalabilidade e a velocidade de desenvolvimento necessárias para sustentar o crescimento de um produto. Mas, se você entrar sem um plano claro, corre o risco de trocar um conjunto conhecido de problemas por outro muito mais complexo e distribuído.