A IA no desenvolvimento de software está virando padrão em times de engenharia. Está integrada nas IDEs, aparece nos pull requests, revisa código e gera testes. Mas entre o hype e a realidade, uma pergunta ainda incomoda muita gente: o que realmente muda no dia a dia de quem desenvolve software?
Ela sugere código, escreve doc, explica função. O que antes levava tempo e exigia atenção virou sugestão de autocomplete. Mas a questão já não é mais o que ela consegue fazer. É como isso está mudando a rotina dos times, a forma como entregamos e o papel de quem escreve código.
A IA resolve o trabalho chato. Mas e o que importa?
A IA resolve várias fricções clássicas: boilerplate, documentação, testes unitários repetitivos, sugestões de melhoria durante o review. Esses ganhos aparecem nos dados da última pesquisa DORA sobre o uso de IA em times de engenharia:
- Mais tempo em flow (+2,6%)
- Maior satisfação (+2,2%)
- Menos burnout (-2,6%).
Isso melhora a experiência de desenvolvimento, principalmente para tarefas repetitivas que costumavam travar o ritmo.
Mas o estudo também mostra que o tempo gasto com o que os devs consideram trabalho valioso caiu (-0,6%). Por quê? Porque a IA agiliza tanto a execução que ela tira parte do esforço intelectual envolvido. E para quem gosta de resolver problema a fundo, isso faz diferença.
Vários devs relatam algo comum: terminar uma tarefa mais rápido do que o esperado, mas sem aquela sensação de desafio resolvido. A IA resolve, mas nem sempre engaja. Ela responde, mas não ensina. Isso afeta principalmente devs experientes, que valorizam autonomia técnica e aprendizado contínuo.
Código em dobro, problema em dobro
A IA aumentou a velocidade de produção de código. Mas isso não está vindo junto com melhoria na entrega. O DORA mostra que a estabilidade caiu 7,2% e o throughput, 1,5%. Parece contraditório, mas faz sentido.
Mais código não significa melhor código. A IA incentiva mudanças maiores, porque ficou mais barato testar ideias. Só que PRs grandes são mais difíceis de revisar, mais propensos a bugs e menos fáceis de deployar com segurança.
É comum ver PR com 20 arquivos alterados, metade gerado por IA, com testes mínimos e revisão superficial. Isso quebra o fluxo. O que antes era entrega contínua, virou lote acumulado.
Além disso, como ficou mais fácil gerar soluções, ficou mais comum resolver sintoma em vez de causa. Refatoração cosmética, função nova onde bastava reestruturar lógica existente, generalização antes da hora. O débito técnico continua crescendo, só que com cara de produtividade.
A IA só melhora se o básico já estiver resolvido
Em times com processos ruins, a IA só multiplica a bagunça. Código sem teste, revisão fraca, deploy manual, decisões técnicas tomadas no susto, tudo isso fica pior quando você acelera a geração de código sem mudar o contexto.
A IA vai sugerir o que parecer correto, mas ela não conhece as restrições do negócio, os padrões internos, a arquitetura do sistema. E aí, ou o dev corrige manualmente, ou deixa passar. E quando deixa passar, o estrago é invisível até dar problema.
Agora, quando o time já tem pipeline sólido, boas práticas de revisão e cultura de aprendizado, a IA ajuda. Resolve o óbvio, economiza tempo, sugere alternativa. Libera espaço pra trabalhar no que exige raciocínio e discussão. O ponto é: ela não melhora o time. Ela amplifica o que o time já faz.
O papel do dev mudou. E nem todo mundo se ligou
Se antes o diferencial era escrever bem, agora é saber decidir o que vale a pena escrever. E isso muda o reconhecimento, tanto interno quanto externo.
Quem ainda mede impacto por complexidade de código ou número de linhas perde visibilidade. A IA resolve bem essas partes. O que sobra é julgamento, clareza, alinhamento técnico-produto, manutenção do que já existe e isso não é tão visível quanto feature nova.
O DORA lista cinco dimensões de valor no trabalho dev: impacto real, reconhecimento, valor de mercado, aprendizado e prazer. A IA interfere em todas. Pode ajudar, mas também pode diluir. Especialmente para quem gostava de ir a fundo, explorar alternativas, ou criar algo do zero.
Times bons tiram proveito
Os dados mostram que os maiores ganhos aparecem em ambientes com processo bem definido:
- +7,5% em qualidade da documentação
- +3,4% em qualidade de código
- +3,1% em velocidade de review
Esses times usam a IA como atalho para tarefas que já fariam bem. Gera a primeira versão de uma doc, escreve testes básicos, sugere melhoria de código. Tudo isso só funciona porque o time sabe revisar, refinar, ajustar e corrigir.
Já times com pressa, sem alinhamento e sem processo sólido acabam transformando a IA numa muleta. Parece que estão indo mais rápido. Mas estão só encurtando o caminho pro retrabalho.
IA só funciona onde há espaço pra testar e ajustar
A IA pega melhor onde há espaço pra testar. É o que mostram os dados:
- Times com tempo reservado pra aprender IA: +131% de adoção
- Times com política clara de uso: +451% de adoção
- Times que falam abertamente sobre receios: +125% em confiança
Não é sobre saber escrever prompt. É sobre ter espaço pra usar, entender onde ajuda, e adaptar conforme o contexto do time. Quem lidera precisa garantir esse espaço. Senão, a IA vira só mais uma feature que ninguém usa direito.
E agora que a IA já resolveu a parte chata?
A IA tirou da frente várias tarefas que ninguém queria fazer. Agora sobra tempo. Mas tempo livre sem direcionamento vira ruído: mais reunião, mais cobrança, mais pressa.
O desafio real agora é usar esse tempo pra fazer o que importa: melhorar arquitetura, refatorar com calma, revisar de verdade, pensar em como escalar o sistema sem aumentar a complexidade a ponto de travar a equipe. A IA abriu esse espaço. Mas ela não diz o que fazer com ele.